Resumo. O texto apresenta o resultado do primeiro Laudo Arteterapêutico Jurídico do Brasil realizado a partir da leitura de desenhos de um serial killer. O objetivo deste artigo é relatar a experiência da entrevista realizada com o acusado e a leitura dos desenhos encontrados em sua pose no momento da detenção, para fins de auxiliar na interpretação e elaboração do laudo, propiciando entendimentos em relação à história de vida do sujeito e suas conflitivas, auxiliando na compreensão do magistrado sobre o processo em questão. O relato se refere a um brasileiro, adulto jovem, solteiro, sexo masculino, atualmente preso por homicídios de crianças e adolescentes, ocultação de cadáveres e, em alguns casos,
violência sexual post-mortem. Procura-se mostrar os significados dos sete desenhos que fizeram parte do processo judicial e que cobram importância ao trazer à tona conteúdos internos do assassino. A avaliação dos desenhos foi feita mediante duas leituras, uma do próprio acusado que referiu gostar de desenhar, outra pela Leitura Transtextual Singular de Imagens. Pode-se observar na leitura dos desenhos sinais de um sujeito sem capacidade de empatia, com sintomas de psicopatia havendo repetida manifestação de uma negação dos
conteúdos inconscientes, levando-o por diversas vezes à um comportamento ambíguo que ora ocupa o papel de vítima, ora ocupa o papel de algoz. Nesse sentido, esta experiência pode contribuir de modo relevante para as múltiplas áreas que realizam interfaces nas
ciências forenses e de saúde mental.
Palavras-chaves: Homicídio;Transtorno da Personalidade Antissocial; Violência sexual.
- Introdução
Do ponto de vista criminológico, quando um assassino reincide em seus crimes com um mínimo de três ocasiões e com certo intervalo de tempo entre cada um, é conhecido como assassino em série, ou, na expressão inglesa, serial killer. Esse tipo de assassino se destaca por seu papel à parte na criminologia e torna-se uma dificuldade para a psiquiatria e a psicologia. Ele desafia as ciências e acaba causando uma batalha entre promotoria e defesa sobre a dúvida de ser ou não alguém com desvio de personalidade.
As questões que envolvem homicídios em série são fascinantes da perspectiva científica, e existem muitos aspectos a serem analisados sobre tal tema. Dentre esses aspectos, o problema primordial é se seriam os serial killers portadores de psicose, sofrendo com delírios e alucinações, ou simples delinquentes, acometidos de uma psicopatia, buscando no crime a pura satisfação de prazer.
Um dos mitos que existem em serial killers é que todos os crimes possuem conotação sexual, mas Hickey entende que a motivação não precisa ser sexual e sim a satisfação no ato de matar. Ainda, refere o autor, outro mito indica que os serial Killers podem matar por ter sido abusados sexualmente na infância, mas o fato é que muitos assassinam como resultado da violência que gerada pela rejeição e o abandono.
A leitura de desenhos é muito utilizada nos campos da psicologia e da arteterapia. As imagens mentais, criadas pela imaginação, revelam os conteúdos conscientes e inconscientes dos sujeitos. Assim, utilizam-se meios expressivos diversos para materializar em formas visuais tais conteúdos, através de símbolos nos quais se procura interpretar uma realidade que pode ficar oculta por trás daquilo que se vê. E como cada pessoa tem um modo de criação individual, é necessário contemplar essa singularidade, partindo do significado dado à imagem pelo seu autor.
O objetivo deste artigo é relatar a experiência da entrevista realizada com um serial killer, conjugada com a leitura dos desenhos que foram encontrados em sua posse no momento da detenção. Essa experiência possibilitou a elaboração do primeiro Laudo Arteterapêutico Jurídico do Brasil, propiciando entendimentos em relação à história de vida do sujeito e suas conflitivas e auxiliando na compreensão do magistrado sobre a situação pessoal do acusado.
A avaliação dos desenhos foi feita mediante duas leituras, uma do próprio acusado, que referiu gostar de desenhar, mas que o fazia somente quando tinha “sonhos ou flashes”, outra pela Leitura Transtextual Singular de Imagens, que apresenta uma base hermenêutico-simbólica, uma vez que se fundamenta nas modalidades antropológicas do imaginário.
2. Marco teórico
As teorias do imaginário se beneficiaram, no século passado, de um tempo-espaço em que vigorou a estética surrealista, promovendo a emergência da imaginação, e cuja ideia principal era expressar o que tinha sido sonhado ou os conteúdos latentes. O sonhar poderia trazer uma compreensão daquilo que havia sido reprimido pelo consciente. Na busca do que escondia o inconsciente freudiano, os surrealistas exploraram os processos e a linguagem do sonho. Então, a imaginação começou a ser privilegiada, e destacam-se, brevemente, como fundamentais para a interpretação dos desenhos do acusado, dois autores, Jung e Durand, dentre tantos outros que também se interessam pelo assunto.
Jung divide a personalidade em dois modos básicos: introvertido e extrovertido. O primeiro percebe o mundo de acordo com sua própria situação; o segundo se define conforme o que acontece ao seu redor. A esses grupos, o autor acrescentou as quatro funções básicas da consciência – pensamento, sentimento, sensação e intuição –, criando, então, oito tipos psicológicos, que unem o modo básico com a função, por exemplo, pensamento extrovertido ou sensação introvertida, e os outros seis tipos que surgem dessa ligação. A ideia de Jung não foi reduzir ou classificar as pessoas, mas mostrar as diferenças pessoais.
Neste relato, optou-se por utilizar a teoria junguiana no que respeita às funções conscienciais humanas e aos aspectos simbólicos. Assim, cabe destacar os estudos realizados por Jung sobre a simbologia da imagem, na qual a ideia de inconsciente coletivo e, sobretudo, a teoria dos complexos e arquétipos possibilitam a existência de uma obra simbólica.
Se a teoria junguiana relativa ao papel das imagens é uma das mais profundas, no tocante ao símbolo, é bastante complexa. Contudo, o criador da Psicologia Analítica parte de uma significativa diferença entre signo-sintoma e símbolo-arquétipo para fazer críticas ao método psicanalítico de Freud.
Jung diferencia signo de símbolo, contrariamente aos semioticistas, que englobam o símbolo na teoria dos signos. O símbolo é uma palavra, gesto ou imagem que apresenta conotações especiais, além do seu significado convencional. Implica algo oculto, ou tem um aspecto inconsciente amplo e não inteiramente definido. O símbolo se caracteriza pela fusão dos contrários: o geral e o particular. Ao tentar compreender qualquer sistema expressivo, tomado em sua gênese, oferece a possibilidade de estudar os fundamentos do desenvolvimento biofísico, psíquico e sociocultural.
As teorias até aqui mencionadas permitiram compreender melhor a complexa rede de situações vividas pelo acusado e suas significações. O pensamento junguiano foi subsídio fundamental para desenvolver as pesquisas do imaginário realizadas por Durand , nas quais a imagem que serve de suporte a símbolos e arquétipos religa as pessoas em sua cotidianidade. O imaginário é inseparável de imagens, mentais ou visuais, que servem para que cada ser humano construa o sentido da sua vida. A esse respeito, as imagens podem contribuir para enriquecer a significação do mundo ou para elaborar a subjetividade.
Durand fala desde o lugar da antropologia simbólica, sistematizando uma teoria do imaginário e mostrando como as imagens se inserem num trajeto identificado pelo mito, que inicia em nível neurobiológico e se estende até a dimensão da cultura. Alarga as criações do imaginário ao conjunto de toda produção cultural para evidenciar que o imaginário provoca uma junção entre as modalidades que sustentam produções singulares de imagens em conjuntos isomorfos e significações reguladas por um número de schèmes* , arquétipos e símbolos.
O schème reúne os gestos inconscientes sensoriomotores, entre os reflexos dominantes e as representações. Os arquétipos são secundários, e os símbolos designam o processo geral de pensamento. Os símbolos designam a expressão cultural do arquétipo e especificam-se sob a influência da materialidade. “Daí a possibilidade de uma transformação do símbolo em sintoma, isto é, de uma degradação do símbolo em sinal puramente social onde a riqueza e a plurivocidade deste desaparece e dá lugar à rigidez do estereótipo”.
Todas as motivações sociológicas e psicológicas propostas para compreender as modalidades ou a gênese do simbolismo pecam por alguma forma de reducionismo, e Durand afirma que a antropologia, se não puser limitações a priori, pode dar conta de estudar as motivações simbólicas e tentar unir, no nível do imaginário, as pulsões subjetivas e as intimações objetivas que emanam do ambiente.
3. Relato da experiência
O relato se refere a um brasileiro cujo pseudônimo é Abel, solteiro, 26 anos de idade, sexo masculino, com ensino fundamental incompleto, atualmente preso por homicídio de várias vítimas, todas crianças e adolescentes, com abuso sexual de algumas, após ter cometido os assassinatos e ocultação dos cadáveres. No momento da entrevista, apresentava-se lúcido, orientado no tempo-espaço, com boa memória dos fatos passados e pensamento lógico em acordo com o seu grau de escolaridade.
O encontro com o acusado se deu numa sala especial no fórum da cidade. Ele veio algemado e acompanhado de dois policiais, pois estava em prisão preventiva. Após a realização de uma breve anamnese para conhecer alguns aspectos da sua vida, logo foi inquirido sobre os significados dos desenhos que se encontravam em seu poder ao ser detido, importando, fundamentalmente, o significado do que se produziu e o seu valor simbólico. As significações de alguns desenhos que fizeram parte do processo judicial trouxeram à tona a interioridade do acusado.
O simbolismo da cabeça e do chapéu aparece na maioria dos desenhos. Na Figura 1, observa-se uma cabeça de perfil, com longos cabelos, uma grande orelha e um olho que salta da face. Abel negou, inicialmente, que a figura tivesse algum significado para ele, mas, incentivado a continuar a observá-la, comentou que essa imagem já tinha sido “vista antes na parede” e, em outro momento, disse que a imaginou e que o desenho “foi de cabeça”. Para ele, “alguém com um olho daquele tamanho, uma pessoa com defeito no corpo é um mutante”, mas não soube definir o que é um mutante.
Figura 1. Desenho encontrado com Abel no momento de sua prisão.
O olho pode ter particularidades espantosas. Ao sair do corpo sem se separar dele, dirige-se espontaneamente para o objeto da percepção. A visão é o desejo, o olho é a cobiça, o mundo do homem é percebido através do seu olhar. Ao ser consultado se considerava que um mutante poderia ser alguém que muda, os sinais corporais do acusado se mostraram alterados, havendo mudanças no ritmo respiratório, produzindo tremor nos pômulos, seguido da tentativa de ocultar o rosto. Se o mutante é uma pessoa que apresenta características genéticas diferentes das dos seus pais, também se poderia dizer que Abel não se sente parte integrante da família; talvez, alguém diferente daquilo que reconhece como seus antepassados.
A cabeça simboliza o ardor do princípio ativo, masculino; abrange a autoridade de governar, ordenar e instruir . Esse significado coincide com o laudo psicológico que entende como desencadeadores da violência o controle e a dominação das suas vítimas, escolhendo-as com particularidades comuns e com plena consciência do sofrimento impingido aos menores de idade.
O cabelo é um vínculo que permite a identificação com outros, podendo indicar, também, virtudes ou poderes. A orelha longa pode significar um duplo símbolo sexual: o pavilhão representa um pênis, e o conduto auditivo, muito marcado em preto no desenho, a vagina ou o ânus. As grandes orelhas seriam, ainda, as insígnias da estupidez, simbolizando a perversão de desejos.
Na orelha, está pendurado um brinco em cruz, com três pontas em forma de flecha. A perfuração da orelha indica um modo muito antigo de ligação e apropriação. A cruz pode significar a morte, e a flecha, a penetração, a cobertura, o elemento fecundante. A flecha é símbolo da ponta afiada que voa para surpreender ao longe sua vítima, indicando a morte súbita e fulminante. Atingir o objetivo com a flecha estaria indicando um sentimento de realização por quem a lança. O armamento possui um simbolismo sexual; por exemplo, os australianos agitam flechas à maneira de falo e dançam em volta de uma fossa na terra, símbolo de órgão feminino, no qual plantam paus, indicando o momento da penetração.
A Figura 2 apresenta uma caveira com um chapéu. O autor manifestou que “o desenho foi criado após ter visto o filme Noite Alucinante, em que vários esqueletos utilizavam uma espécie de capacete”. Abel, porém, trocou o capacete por um chapéu de palha furado por um tiro.
É possível que Abel estivesse se referindo ao filme Uma noite alucinante: a morte do demônio (Army of Darkness). O diretor Sam Raimi [8], após dois sucessos de bilheteria com Evil Dead e Evil Dead II, criou uma aventura no tempo cheia de ação, humor, cenas bizarras, de horror e recursos trash**. No filme, um exército de esqueletos aparece usando capacetes. Há um jogo de tempos diferentes entre os séculos XIV e XX, o que pode ter levado o entrevistado a trocar o capacete medieval pelo chapéu furado por uma arma de fogo.
Figura 2. Desenho encontrado com Abel no momento de sua prisão.
Os vilões dos filmes de terror podem ser uma alegoria da natureza humana, permitindo que relações entre os aspectos psicológicos dos humanos e as características dos monstros na ficção sejam estabelecidas. Uma questão recorrente nesses filmes é a relação entre a força sexual e a punição estabelecida por monstros ou psicopatas.
Assim como os desenhos, cenas filmadas também podem ajudar a revelar conteúdos inconscientes. O filme mencionado mistura aspectos frequentes na vida de Abel: fantasias macabras, morte, terror, aventura, artes marciais, armas, sexo, violência e outros.
Considera-se que a caveira pode, simplesmente, simbolizar a morte; já o chapéu significa poder, soberania e reforça o simbolismo da cabeça, quiçá, manifestando um pensamento referente à soberania da morte. Mas utilizar um chapéu pode indicar, igualmente, alguém que assume uma responsabilidade por uma ação que não tenha cometido.
O simbolismo da cabeça, do chapéu, da orelha e do olho sugere o desejo de poder do acusado sobre os outros, a sexualidade exacerbada com suas vítimas, o fascínio pela morte e a violência brutal dirigida ao ambicionado objeto de prazer. Nas vítimas, era deixada uma assinatura, sendo essa atitude uma característica dos serial killers, no caso de Abel, um golpe de Muay Thai.
Na Figura 3, observa-se um rosto cujos olhos estão à espreita de algo. A boca apresenta um leve sorriso. O acusado disse se tratar do “desenho da sombra embaixo d’água”, de alguém que ele chama de “sombra”, por estar sempre do seu lado, e que o acompanha há cinco anos. Ao descrevê-la, revelou: “Ela não possui corpo, somente o rosto, sem braços e sem pernas, e em cima do rosto há um fantasma, como se fosse um chapéu”.
Figura 3. Desenho encontrado com Abel no momento de sua prisão.
Essa imagem surgiu num sonho muito marcante para Abel. Ele afirmou, também, que “há uma pessoa escondida por trás dessa sombra” e que a desenha quando fica um tempo num lugar. Ao ser questionado sobre a identidade da pessoa por trás da sombra, perguntou: “Mas, vivo ou morto?”. O acusado aparentou ficar confuso ao falar dessa segunda pessoa, não conseguindo definir se está viva, se faz parte dos seus sonhos ou se já morreu. Para Abel, o sonho não é uma irracionalidade, mas uma realidade
Na teoria de Jung, os sonhos possibilitam o acesso à vida psíquica quando podem ser esclarecidos. “Mas a grande dificuldade consiste nesse esclarecimento. Isso exige não apenas muita experiência e tato, mas também conhecimentos. A interpretação de sonhos que toma por base uma teoria geral ou uma hipótese não é apenas uma prática ineficiente, mas até reprovável e prejudicial”.
A “sombra” mergulhada na água pode se referir a um processo de purificação ou a uma morte simbólica e regeneradora de energia. Jung diz que a sombra é “[…] o lado escuro e nefasto da nossa natureza” e, mais adiante, “[…] sempre presente e potencialmente destruidora”.
Abel também comentou que a “sombra” aparece habitualmente em seus sonhos. A análise junguiana qualifica como sombra o que a pessoa não quer reconhecer, mas que sempre se impõe a ela. “Essa sombra se projeta nos sonhos sob a figura de certas pessoas, que não passam de reflexos de um certo eu inconsciente. Ela também se manifesta por palavras e atos impulsivos e incontrolados, que traem, de repente, um aspecto do psiquismo”.
De acordo com o simbolismo, o olhar pode matar, fascinar, fulminar, seduzir. Relacionado à sombra, pode-se dizer que é a ordem do predador. O olhar dirigido de cima para baixo indica uma posição superior ou a diferença de altura entre quem olha e o objeto olhado. O desenho se assemelha às máscaras dos indígenas do noroeste da América, entre os quais existe o mito de uma deusa monstruosa que roubava crianças para comer. Lembra-se que os homicídios foram cometidos com crianças e adolescentes.
A repressão dos desejos humanos leva a que estes sejam lançados no mundo do inconsciente. Quanto maior a repressão e quanto menor a descarga do inconsciente, ou o desenvolvimento da persona (sublimação), maior será a força da sombra.
A Figura 4 apresenta outro rosto, semelhante ao anterior, no qual o olhar não aparece e o sorriso se repete. Segundo Abel, a textura de pontos utilizada na base do rosto representa que a imagem está pouco nítida. Trata-se da “sombra com vento”. “Nos sonhos, a sombra está atrás de uma pessoa, e eu sempre estou junto, aonde eu vou, ela vai comigo”, disse ele, complementando que “a sombra é o predador”. Ainda, referiu que sonha seguidamente com a “sombra” e sempre escreve no outro dia o que sonhou, porém, não gosta de falar no assunto para não ser visto como “louco”.
A literatura refere que “O simbolismo do vento apresenta vários aspectos. […]. É uma força elementar que pertence aos Titãs, o que indica suficientemente a sua violência e sua cegueira”. A boca pode simbolizar a força criadora e, ao mesmo tempo, a força da destruição.
Figura 4. Desenho encontrado com Abel no momento de sua prisão.
Entre as cartas publicadas de Jung, encontra-se uma que diz: “Em primeiro lugar, é preciso aceitar e levar a sério a existência da sombra. Em segundo lugar, é preciso estar informado sobre suas propriedades e intenções. E, em terceiro lugar, são necessárias longas e difíceis negociações.” Na mesma correspondência, escreve: “Muitas vezes as intenções aparentemente impossíveis da sombra são apenas ameaças, como resposta à recusa do eu de prestar-lhe uma atenção real. Estas ameaças costumam diminuir quando são enfrentadas com seriedade”.
As sombras desenhadas por Abel atormentam suas noites, pois, conforme referiu, dorme somente três ou quatro horas durante o dia e tenta ficar acordado no horário noturno para evitar os sonhos. Também relatou que, quando criança, às vezes, dormia no quarto dos pais porque pensava que “a casa estava malassombrada”.
A Figura 5 expressa um mandala, que em sânscrito significa forma circular ou espiral. Jung introduziu a ideia de utilizar essas figuras na psicologia com base em sua busca interior. Observou que seus desenhos mudavam à medida que seu estado mental se alterava. Desenhar mandalas é um ato espontâneo, não é preciso ser ensinado, e esse ato é utilizado em diversas culturas com finalidades ritualísticas.
Essa forma isola um conteúdo ou um processo que aparece espontaneamente em sonhos em certas situações de conflito e de desorientação psíquica. Abel disse que se trata de um desenho tribal, semelhante aos de tatuagens, referindo ter duas tatuagens no corpo, uma em cada ombro.
Figura 5. Desenho encontrado com Abel no momento de sua prisão.
Trata-se de um mandala dividido em quatro partes. Esse número é muito comum no simbolismo dos mandalas individuais, podendo expressar o caráter quádruplo da mente na atividade das funções da consciência: pensamento, sentimento, intuição e sensação. Também, sugere uma tentativa de conhecer o lugar da pessoa no cosmos. Entretanto, o mandala desenhado por Abel expressa o movimento contrário aos ponteiros do relógio, indicando as forças caóticas e destruidoras [15].
Nesse desenho, é possível ler um dilema a respeito das suas urgências na vida. O símbolo do quaternário contém uma síntese dos contrários em uma imagem que acentua as dificuldades de uma escolha pessoal, ligada a uma fase bastante atormentada da vida.
Outro mandala, na Figura 6, apresenta um inseto semelhante a uma aranha. Abel explicou: “Se trata de alguém que chamo de ‘bruxa’ e que se apresenta em forma de aranha”. S “Alguns símbolos arquetípicos constitutivos do mandala, como demônios, divindades pacíficas ou maléficas, correspondem, em termos psicológicos, àquele fundo obscuro e inquietante do nosso inconsciente” [16]. E de acordo com Jung [17], os vestígios da conflitiva emergem quando o mandala expressa a divisão em metades, uma escura e outra luminosa, assim como se observa nas Figuras 5 e 6. Abel criou imagens de forças poderosas que o protegem das coisas assustadoras da alma.
Figura 6. Desenho encontrado com Abel no momento de sua prisão.
O simbolismo da aranha indica a sua natureza ameaçadora, com sua teia que evoca com clareza a situação de alguém retido pelos múltiplos fios das redes da existência. Pode, ainda, revelar o próprio modo de ser traiçoeiro ou as estratégias criadas e semelhantes às da aranha, sempre à espreita para caçar os outros nas próprias redes.
“A bruxa”, assim como “a sombra”, “também se apresenta em sonhos”, comentou Abel, relatando, na sequência, vários momentos de adivinhação ao longo de sua vida. Tanto a aranha quanto a bruxa estão ligadas a mitos de adivinhação, como personagens que há muitos séculos indicam previsões.
Durante a infância, ele percebia, estando acordado, quadros que se movimentavam, luzes de fantasmas sem forma aparente e a presença de um homem com um machado que batia na bicicleta de seu pai. Na adolescência, teria adivinhado, em sonhos, a morte da sua avó materna, tendo viajado à sua cidade natal, inclusive, para se despedir dela, fato que nunca teria comentado antes da entrevista realizada com as autoras.
Há uma aparente confusão mental entre aquilo que sonha e as suas fantasias sobre fantasmas e aparições. “Mas o fato mais extraordinário é que a figura do mandala evoca espontaneamente os sonhos e fantasias de pessoas que estão próximas a crises mais ou menos graves de existência como, por exemplo, numa fase crítica da vida”.
Os mandalas foram efetivados de modo consciente ou inconsciente, mas de qualquer forma retratam a situação caótica e a desorientação da psique no momento em que foram realizados. Ou, nas palavras de Jung, o acusado lançou mão “[…] naturalmente desses meios auxiliares para orientar-se no caos dos processos inconscientes que querem vir à luz”.
Ainda, os mandalas funcionam como objetos de reflexão e possibilitam projetos de reorientação para o mundo exterior, uma vez que, durante a entrevista, Abel comentou que desejava retornar à sua cidade natal para fazer tratamento psiquiátrico e tomar medicação para dormir, mas não podia, por estar foragido por causa do primeiro homicídio que cometera.
Figura 7. Desenho encontrado com Abel no momento de sua prisão
Na última figura, como na segunda, Abel coloca a caveira no centro da folha, constando, na margem superior esquerda, a imagem de um menino com chapéu e com grandes pés. O pé estaria repetindo o simbolismo do poder presente no chapéu. Quando o pé é grande, pode indicar uma ênfase maior no erotismo e na atração sexual . Abel contou ter extraído o desenho da caveira de uma camiseta e que o escolhera porque “foi o mais fácil” e gostou das cores, enquanto que o desenho do menino foi copiado de outra camiseta, tendo lhe interessado por “se parecer com um ET”. Os dois pontos mencionados, no centro e na margem superior esquerda, de acordo com a simbologia espacial, tanto ao arquétipo do pai como ao pai impessoal e ao progenitor, o que pode indicar uma relação conflitiva com essa figura masculina que Abel qualifica de “durão”. Na entrevista, relatou que o pai frequentava bares e bebia em excesso; depois, em casa, agredia a mãe. Os pais de Abel se separaram durante sua adolescência, então, ele repetia o comportamento paterno, indo para a rua em busca de brigas. Percebeu-se uma cicatriz antiga no rosto.
Na margem superior direita, encontra-se a figura de uma fera. Quando questionado sobre esse desenho, o acusado afirmou ser uma pantera, que se assemelha simbolicamente ao tigre, indicando a ideia de poder, ferocidade, e que somente comporta sinais negativos: animal caçador, carnívoro, muito agressivo. Nesse ponto, a imagem do animal está ligada aos objetivos, às projeções e à própria morte. O aparecimento da animalidade na consciência pode ser sintoma de depressão e ansiedade.
Correntes aparecem na boca da caveira e de um animal incompleto, este mais no centro da folha e que Abel identificou como um cachorro buldogue. Segundo ele, “o cachorro é um guardião”. A função mítica do cão é efetivamente de guardião, protetor e guia da morte, após ter sido companheiro durante a vida. As correntes limitam e reprimem o espaço de ação. Uma pessoa acorrentada não tem liberdade para realizar os seus desejos, o que foi reconhecido por Abel, ao dizer que “o jogo acabou” e agora está preso. A corrente pode simbolizar, também, a necessidade de uma adaptação à vida coletiva e à capacidade de integração a um grupo, ou marcar uma fase de evolução ou involução pessoal. A mordida nas correntes pode significar o desejo de liberdade ou o corte com a vida social.
No canto inferior esquerdo, aparecem várias palavras, como “dezmiolada” (sic) ou “dezdentada” (sic), as quais, conforme o relato de Abel, foram retiradas de uma camiseta que fala sobre as sogras. As palavras estariam sugerindo uma carência latente, uma vez que o prefixo des significa “sem”. A localização das expressões, de acordo com a simbologia espacial, indicaria uma carência em relação à figura materna, certa tendência à regressão e a conflitos inconscientes ligados à origem. O entrevistado definiu sua mãe como uma pessoa alegre, mas afirmou que a sua falecida avó materna era uma referência importante para ele e que com ela se identificava mais que com a própria genitora.
Os desenhos de Abel apresentam características que podem corresponder a uma pessoa bastante agressiva e ansiosa, com dificuldades de relacionamento e convívio social, com certa tendência obsessiva a representações ligadas ao fascínio da morte, do mando ou do poder, bem como à exaltação da sexualidade. Embora durante a entrevista tenha aparentado ser uma pessoa tranquila, com boa vontade para responder ao que era questionado, por momentos, mostrou-se bastante confuso em relação ao tema dos sonhos, referindo dificuldades para dormir, o que pode resultar de sentimentos de medo em relação à sombra, ao inconsciente e à morte. Mostrou, além disso, apegar-se ansiosamente à consciência diurna, imaginando que, de certo modo, o inconsciente poderá lhe revelar algo que não quer conhecer.
Os laudos psiquiátrico e psicológico afirmam que Abel apresenta transtorno de personalidade antissocial, podendo ser considerado como do subtipo serial killer, com perversões denominadas de “necrofilia” e “pedofilia”. Esse transtorno determina atos criminosos contínuos pela incapacidade de se conformar às normas sociais estabelecidas, podendo apresentar um exterior normal, agradável e até mesmo cativante, entretanto, suas histórias revelam áreas de funcionamento vital desordenado. Todavia, esse transtorno não elimina a capacidade de compreender a ilicitude dos atos cometidos.
4. Considerações finais
Sexo, violência e morte fazem parte da sociedade em que se vive. Pode-se observar nos desenhos de Abel que há sinais de ultrapassagem dos limites socialmente aceitáveis, por ser um sujeito sem capacidade de empatia, com sintomas de psicopatia, além de uma repetida negação dos conteúdos inconscientes, levando-o por diversas vezes a um comportamento ambíguo, que ora o faz ocupar o papel de vítima, ora o de algoz Informações colhidas no processo, através das perícias psicológica e psiquiátrica, apontam relatos de que Abel foi vítima de agressão sexual, explicitando suas conflitivas expostas no desenho. Tais representações possibilitam o entendimento de uma constante negação daquilo que lhe fere e que, simultaneamente, o faz ferir, trazendo ao ato o mesmo desejo cruel que lhe mortifica.
As relações interpessoais estão impregnadas de violência, mas, no caso de Abel, há uma importante cisão na formação do aparelho psíquico, a qual o impede de sentir a dor do outro, estando enclausurado em sua própria dor, vivendo, como ele mesmo relata, um “jogo”.
Observa-se, que a leitura de imagens – e do desenho, em particular –, assim como o papel que ocupa na vida dos sujeitos, é imprescindível para acessar informações que permitem avaliar a história de vida do sujeito e suas conflitivas, podendo, efetivamente, ser um instrumento capaz de fornecer relevante ajuda na compreensão dos fatos e do acusado pelo julgador. Os desenhos, quando feitos espontaneamente, trazem à tona situações inconscientes que necessitam encontrar uma via de vazão; são comunicações diretas vindas do inconsciente que não podem ser facilmente camufladas e, por isso, diferenciam-se da comunicação verbal.
Neste estudo, consideram-se os desenhos instrumentos complementares aos laudos psiquiátrico e psicológico, verificando-se que, através deles, foi possível identificar um desvio de personalidade no acusado de homicídios, violências sexuais e ocultação de cadáveres. Assim, esta experiência pode contribuir de modo relevante para as múltiplas áreas que realizam interfaces com as ciências forenses e da saúde mental. A opção pela interpretação junguiana demanda análises muito ponderadas, uma vez que os achados não são plenamente replicáveis considerando que se trata de uma interpretação de imagens. Cada caso deverá ser compreendido conforme as imagens produzidas, a história do autor e a significação dada por ele a tais imagens.
Por último, entende-se que as interpretações arteterapêuticas e psicológicas das imagens podem ser utilizadas tanto na avaliação como na integração social de vítimas ou de agressores. É amplamente reconhecida e divulgada a ação de tais ciências no resgate de valores e da cidadania, na melhoria das relações interpessoais e subjetivas, bem como na compreensão de que os níveis de violência podem estar vinculados a fatores culturais, emocionais e de funcionamento psíquico.
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